sexta-feira, dezembro 17, 2004

Carregar Pianos

« Há várias formas de levar uma relação para a frente - dizia o Luis enquanto preparava um sanduiche de queijo e fiambre, depois de chegarmos da praia- Eu, por exemplo, ponho-me a jeito e deixo-me ir. O tempo vai-me dando indicações subtis e de facto um entusiasmo inicial pode ou não levar a qualquer coisa mais consistente e nem sequer penso o que é que vai ser. A isso, os Americanos que têm grande sentido prático e são bons em expressões, chama dar um let go. Mas tu não. Passaste a vida a carregar pianos. Pois passei. A vida toda. Desde o dia em que me apaixonei pelo palerma da terceira classe, depois pelo primo direito da minha amiga Paula, depois pelo Miguel que não me ligava nenhuma e passava o tempo a jogar futebol e ténis. E depois, por mais meia dúzias de caramelos a quem tive o azar de achar alguma graça. Paixões de adolescência, começam do nada e acabam em nada porque não valem nada, a não ser enquanto duram, ás vezes com a vida mais curta do que uma mosca. Paixões impossíveis que nos tiram o sono e o apetite, nos põem a contar estrelas e a escrever poemas pirosos, nos fazem rezar mesmo quando já deixámos de ir á missa desde os onze, nos adoçam o coração e o olhar e enchem a almofada de água salgada quando as coisas correm mal, ou pior, não correm. Depois uma pessoa cresce e habitua-se a sofrer. A esperar. A sonhar um bolo gigante a partir de três migalhas. A acreditar no impossivel , a desejar o impensável. A querer que aqueles que amamos nos tragam o mundo numa bandeja. A isto chamamos carregat pianos. Até ao dia em que uma pessoa se cansa, baixa os braços, olha para o piano, encolhe os ombros e diz basta. Basta de espera, de obrigação, de sonhos , de promessas, de palavras mágicas e inconsequentes . Basta de promessas de amor , de castelos de areia, de adiamentos e hesitações, de ausências e de dúvidas. E depois, o mundo vai abaixo. As casas, os prédios, as pontes, tudo se defaz num estrondo imenso e assustador, que faz quase tanto barulho como um coração a bater com a porta. E como é o nosso coração que está a bater a porta, ainda custa mais. E sentimo-nos a desmanchar por dentro. Não é a partir, é só a desmanchar, como se nada tivesse forma ou fizesse sentido. E o piano está ali mesmo em frente, á espera de ser carregado. Dá vontade de pegar num martelo e de o destruir de raiva. Dá vontade de abrir e tocar meia dúzia de notas. Dá vontade de descansar sobre ele e falar-lhe baixinho, ao ouvido das cordas, para lhe explicar o que se passa. Que o cansaço já está acima do sonho , que o medo está acima da força, que a vontade comanda a vida, mas não o amor. Explicar que o tempo há-de trazer nos ventos a indicação de um caminho qualquer para onde o piano possa ir sem ser carregado. Carregar pianos. Escada acima, quatro andares sem elevador. As costas doem, os braços tremem, as curvas na escada são uma equação impossivel de resolver, tudo é dificil , tudo é inglório. E o amor transforma-se numa luta, num sacrificio, somos mártires da nossa loucura, flagelados pela nossa obstinação e teimosia. E o pior é que quando chegamos ao fim da batalha, e o piano tá lá em cima, não era naquela sala, nem era aquela pessoa. Carregar pianos. Para quê se quase todos têm rodinhas?! Não é desistir, é só mudar de vida e esperar que ela nos traga o que mais precisamos, sem partir as costas nem torcer os braços. E geralmente até traz!»
Margarida Rebelo Pinto

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