quinta-feira, fevereiro 15, 2007

[...] No entanto, foi graças a outro aspecto que este livro me conquistou. A criança que aqui nos conta a sua história era um dos eleitos de Deus. A partir do momento em que a sua consciência despertara, ele só vivia para Deus, alimentado pelo Talmude, possuindo a ambição de ser iniciado na Cabala, devotado ao Eterno. Será que anteriormente já alguma vez tinhamos pensado nesta consequência de um horror menos visivel, menos evidente do que outras abominações, mas que , no entanto, é a pior de todas, para nós que temos fé: a morte de Deus na alma daquela criança que descobre, de uma assentada,o mal absoluto?
Tentemos imaginar o que se passa dentro dela enquanto os seus olhos vêem dissipar-se no céu os anéis de fumo negro saidos do forno onde a sua pequena irmã e a sua mãe serão lançadadas, depois de milhares de outras pessoas: « Nunca mais esquecerei esta noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida um noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca mais esquecerei este fumo. Nunca mais esquecerei as pequeninas caras das crianças cujos corpos eu tinha visto transformarem-se em espirais sob um azul mudo.Nunca mais esquecerei estas chamas que consumiram para sempre a minha fé. Nunca mais esquecerei este silêncio nocturno que me privou,para a eternidade, do desejo de viver.Nunca mais esquecerei estes momentos que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e os meus sonhos, que tomaram a aparência de um deserto. Nunca mais esquecerei isto, mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca mais.»
Compreendi então de que é que eu tinha gostado tanto desde o início no jovem israelita: daquele olhar de Lázaro ressuscitado e, no entanto, sempre prisioneiro das margens tenebrosas por onde vagueava, cambaleando por cima de cadáveres desonrados. Para ele, o grito de Nietzsche exprimia uma realidade quase física: Deus está morto, o Deus do amor, da doçura e do consolo, o deus de Abraão, de Isaac e de Jacob dissipou-se para sempre sob o olhar desta criança, no fumo do holocausto humano exigido pela Raça, o mais voraz de todos os ídolos. E em quantos judeus pios é que esta morte não terá também ocorrido? No dia horrível em que a criança assistiu ao enforcamento (sim!) de outra criança, que tinha, segundo ele nos diz, a face de um anjo desditoso, ela ouviu alguém atrás dela gemer: « Onde está Deus?Onde é que ele está? E dentro de mim um voz respondia-lhe : Onde é que Ele está? Ei-lo - está aqui pendurado nesta forca.»
No último dia do calendário judeu, a criança assiste à cerimónia solene do Rosh Hashaná. Ela ouve milhares de escravos gritarem a uma só voz: « Bendito seja o nome do Eterno!». Ainda não há muito tempo, também ela se tinha prostrado com tamanha adoração, tamanho receio, tamanho amor. Mas naquele dia,ela mantém-se direita, ela resiste. A criatura humilhada, e ofendida para lá do que é concebivel pelo espirito e pelo coração desafia a divindade cega e surda: « Hoje, eu já não implorava, já não era capaz de me lamentar.Sentia-me, pelo contrário, muito forte. Eu era o acusador.E o acusado era Deus. Os meus olhos estavam abertos e eu estava só, terrivelmente só no mundo, sem Deus, sem homem. Sem amor nem piedade. Nada mais era do que cinzas, mas sentia-me mais forte do que aquele Todo-Poderoso ao qual eu tinha unido a minha vida durante tanto tempo. No meio daquela assembleia religiosa, eu era um observador estrangeiro.»
E eu, que acredito que Deus é amor, que podia eu responder ao meu jovem interlocutor cujos olhos azuis ainda conservava, o reflexo daquela tristeza própria de um anjo, aparecida um dia na face da criança enforcada? Que lhe disse eu? Falhei-lhe eu daquele israelita, daquele irmão que talvez se assemelhasse a ele, daquele crucificado cuja cruz venceu o mundo? Ter-lhe-ei dito que aquilo que para ele foi um obstáculo para mim foi pedra angula e que a conformidade entre a cruz e o sofrimento dos homens, continua a ser, aos meus olhos, a chave deste mistério insondável no qual a sua fé de criança se perdeu? No entanto,Sião ressurgiu dos crematórios e dos ossários. A nação judaica ressuscitou por entre estes milhões de mortos. É por eles que ela está de novo viva. Nós não conhecemos o preço de uma unica gota de sangue, de uma unica lágrima. Tudo é graça. Se o Eterno é o Eterno, pertence-lhe a ele a ultima palavra em relação a cada um de nós. Eis o que eu poderia ter dito á criança judia. Mas só conseguia abraçá-lo ao mesmo tempo que chorava."
Elie Wiesel, Noite
So tenho uma coisa a dizer.. É este o Deus Todo-Poderoso, que morreu para nos SALVAR?
Entao aqueles todos que morreram, que foram mortos, nao faziam parte do grupo para ser salvo? Onde esta a misericordia, a piedade.. Por favor, foram crianças queimadas, torturadas.Porquê? Como é que isto aconteceu.
E como é que pode haver um numero tao grande de pessoas capaz de tamanha maldade?
Para alem de ainda nao conseguir compreender todas as mortes,nao consigo compreender a maldade dos SS. Por muitos livros que leia e muitos filmes que veja, nao consigo conceber que haja alguem capaz de se rir perante tais atrocidades.
Atormenta-me.
" Um dia consegui levantar-me, depois de ter reunido todas as minhas forças.Queria ver-me ao espelho que estava suspenso na parede da frente.Desde o gueto que nao me via a mim mesmo.
Do fundo do espelho, um cadáver contemplava-me.
O seu olhar no meus olhos nunca me abandona."

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